08 janeiro 2008

A angústia

Alberto atravessa a passos largos as ruas já desertas da cidade. Nesta altura do ano, há hora do fecho da sua loja na rua de Santa Justa, há já luzes nas janelas das casas para onde as pessoas se recolheram a aguardar que a escuridão passe. As ruas, húmidas da chuva miúda que caíra ao fim da tarde, reluzem amareladamente a caprichosa iluminação pública dos candeeiros. Os seus passos são como a sua própria figura, esguios, secos e vincados. Cobre-o o longo casaco sobretudo negro, como negro está o Tejo, um lençol de águas opaco vogando serenamente na direção do mar.

Virando uma esquina, como se um encantamento se quebrasse apercebe-se de súbito de uma outra presença próxima de si. Foi assim que reparou no varredor que com o corpo ligeiramente dobrado sobre o chão, reclamava com a sua vassoura o domínio exclusivo do passeio oposto da rua, varrendo. Já não seria a primeira vez que se cruzavam, mas dele não sabia mais que a ocupação. De uniforme esverdeado de funcionário municipal encabeçado daquele rosto já gasto, de fundos olhos negros e brancos cabelos em desalinho, formava uma figura estranha e pouco coerente. O seu corpo movia-se de uma forma firme mas pausadamente, sem se apressar, ao ritmo da vassoura a raspar na calçada. Mas o mais intrigante era mesmo o seu olhar, inexpressivo mas manifestamente sábio, só que de uma sabedoria amarga que só uma vida longa e dura pode ensinar...

O varredor é a personificação da angústia existencial, aquela que se sente simplesmente porque se existe e se está lá. Alberto é a personificação da Saudade que anseia por aquilo que nunca teve e teme poder nunca vir a alcançar. Nesta noite, tenho em mim tanto do varredor como de Alberto...

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