30 abril 2007

A Verdade

São as minhas mãos que suportam o meu corpo contra as arestas da imutável rocha. Tive de descer às profundezas da terra, à génese do barro original, para que conseguisse experimentar a manifestação plena da minha ilinearidade. Mas ébrio de mim, encerrado neste sepulcro construído apenas para aprisionar o espírito, julgo avistar ao longe as formas gracioças da Verdade. Mas é mentira!

Qual de nós poderá conter a Verdade inteira dentro de si? A Verdade é a percepção que a totalidade do Real, entendida como uma coisa pensante e dotada de memória, teria de si mesma (alguns de nós, identificam nesta coisa a sua formulação particular de Deus). A Verdade não pode habitar dentro de ti nem dentro de mim porque a Verdade não é um tesouro escondido, à espera de ser desvendado, mas sim também ela própria um sistema ilinear em constante revolução. Aquilo que habita a pessoa que busca isolada nada mais é que a ilusão e a mentira.

O confronto com o outro é sempre ocasião de regozijo para a busca. Se a Verdade te transcende, a tua perspectiva dela só se enriquece através desse confronto. Arrisco agora a definir o que é um amigo: um amigo é aquele que confronta a sua busca com a tua e que por um certo período de tempo caminha a teu lado. Mais, um amigo incorpora a tua busca em si, tornando-se um agente activo no desenvolvimento de uma certa perspectiva comum da verdade, sendo essa busca a história das nossas próprias vidas. Eu, tenho por felicidade ter poucos, mas bons companheiros de caminho...

Ontem, quando me perguntavas 'mas como é que eu posso acreditar em tudo isso que me dizes' deveria ter-te respondido que 'só o poderás vir a descobrir pelo que fizermos depois do agora, do momento presente'. Essa verdade que tu buscas só pode ser experimentada na vivência do outro. Em todo o pequeno encontro fortuito tem de existir em ti a vontade permanente de revelar esse outro, e através dele revelares-te progressivamente a ti.

... então e agora, já podemos caminhar juntos?

28 abril 2007

A estrada

Às vezes é fácil esquecer o sonho debaixo do Sol ardente e da brutalidade do real. Talvez seja por isso que todas as grandes viagens, todas as grandes aventuras começam ao anoitecer.

O fantástico deve povoar sempre o teu imaginário tal como as estórias de princesas, cavaleiros e dragões devem povoar o imaginário das crianças mais pequenas. O fantástico é libertador e organizador. Só o fantástico potencia a verdadeira catarse.

Porque lhe foges? (Porque me foges?) Porque lhe fujo eu?
A fuga é a antítese da busca, é a negação da pessoa...

"The Road goes ever on and on
Down from the door where it began.
Now far ahead the Road has gone,
And I must follow, if I can,
Pursuing it with eager feet,
Until it joins some larger way
Where many paths and errands meet.
And whither then? I cannot say."

Bilbo Baggins in The Lord of the Rings


24 abril 2007

A busca

Ao entardecer, busco o aconchego de uma esplanada em qualquer café da baixa e também eu entardeço com a cidade, oculto na moldura do seu pulsar, envolvido na sua suave mistura de ruídos e perfumes. A azáfama das pessoas que passam, que correm, que compram, que se encontram, que se apartam, sugere a natureza da face social do sistema. Sugere ainda que fazes parte de um todo maior, um papel utilitário na grande representação colectiva, até que por fim, um dia, o pano desça.

Talvez seja por isso que algumas pessoas criam colónias de formigas, com os seus intrincados sistemas de túneis no interior de aquários (porventura mais apropriados a peixes). Cada colónia não é mais que um todo organizado que proíbe a iniciativa individual, totalmente orientado para um único objectivo colectivo: a subsistência da mesma.

E o sujeito deleita-se com a inebriante sensação de poder quartar a vida onde ela não existiria. Mas o nervoso miudinho que sente no ventre de cada vez que contempla a sua obra vem da recalcada percepção de que nele está também o poder de a destruir de um só golpe.

Estará este sujeito, inserido dentro da sua própria obra, imitando nela a sua própria existência, o seu papel utilitário, frustrado no seu desajustamento ou realizado numa confortável acomodação? Estará este sujeito, transcendente à sua própria obra, separado da sua própria existência, feito deus em si, desapontado com o real que nela ilustra ou alienado dessa perspectiva do real? Em qualquer dos casos o nervoso miudinho é sempre ânsia do impulso constante da destruição de si mesmo.

É por isso que eu prefiro a incessante busca. A busca não contrói representações temporárias de si. A busca humaniza-te. A busca leva-te sempre mais além do que o teu sonho julgaria adequado.

Atravesso-te doce Tejo. Atravesso depois montes de terra vermelha, testemunhas eternas de antigas batalhas à (vã) glória de nomes há muito esquecidos. Ao longe, vislumbro por fim o oceano...

Gosto de observar e escutar o mar. Mas será que há alguém que possa dizer que de facto compreende o mar eterno? Certamente que não. Do que eu gosto mesmo, é de ver e ouvir o mar directamente através dos sentidos, lá no mais profundo da minha alma, onde a própria compreensão já não tem sentido.

O mar consagra-te, pois se perante a sua vastidão e perenidade nada representas, qualquer uma das suas gotas de água viva te pertence quando a ele te entregas. O mar liberta-te. Nele podes escapar à escravidão e experimentar-te em toda a tua ilinearidade. Foi essa a água que um dia te fez e a ela também um dia retornarás. E cada amanhecer que separa esses dois momentos será para ti uma oportunidade de nela renasceres, retemperada.

A busca leva-te sempre mais além...