09 janeiro 2008

O anjo

Depois de olhar prolongadamente para os olhos do anjo,
nada lá encontrei senão o que eu próprio lá deixei.

De cada vez que me penso sou eu que me vejo assim,
pelos olhos do anjo como se fossem os meus, em mim.
De cada vez que te vejo já não sei se é mesmo a ti que estou a ver.
Vejo-te a ti mas sinto-me a mim e repenso-te como me apetecer.
Não existes, digo a mim mesmo, não passas de uma ilusão...
Mas basta olhar para os olhos do anjo para me convencer que não.

"Sabes como me chamo?" Sei,
chamas-te qualquer nome que eu te queira dar
e mesmo sabendo que deste sono não se desperta
repito a mim mesmo que tenho de continuar a tentar,
escapar.





"...e tu o que é que achaste?"
pergunta-lhe ele no final do concerto visivelmente enternecido.
"Achei que foi demasiado melodramático, pelo menos para o meu gosto."
respondeu-lhe ela com um encolher de ombros e um franzir de testa...

08 janeiro 2008

A angústia

Alberto atravessa a passos largos as ruas já desertas da cidade. Nesta altura do ano, há hora do fecho da sua loja na rua de Santa Justa, há já luzes nas janelas das casas para onde as pessoas se recolheram a aguardar que a escuridão passe. As ruas, húmidas da chuva miúda que caíra ao fim da tarde, reluzem amareladamente a caprichosa iluminação pública dos candeeiros. Os seus passos são como a sua própria figura, esguios, secos e vincados. Cobre-o o longo casaco sobretudo negro, como negro está o Tejo, um lençol de águas opaco vogando serenamente na direção do mar.

Virando uma esquina, como se um encantamento se quebrasse apercebe-se de súbito de uma outra presença próxima de si. Foi assim que reparou no varredor que com o corpo ligeiramente dobrado sobre o chão, reclamava com a sua vassoura o domínio exclusivo do passeio oposto da rua, varrendo. Já não seria a primeira vez que se cruzavam, mas dele não sabia mais que a ocupação. De uniforme esverdeado de funcionário municipal encabeçado daquele rosto já gasto, de fundos olhos negros e brancos cabelos em desalinho, formava uma figura estranha e pouco coerente. O seu corpo movia-se de uma forma firme mas pausadamente, sem se apressar, ao ritmo da vassoura a raspar na calçada. Mas o mais intrigante era mesmo o seu olhar, inexpressivo mas manifestamente sábio, só que de uma sabedoria amarga que só uma vida longa e dura pode ensinar...

O varredor é a personificação da angústia existencial, aquela que se sente simplesmente porque se existe e se está lá. Alberto é a personificação da Saudade que anseia por aquilo que nunca teve e teme poder nunca vir a alcançar. Nesta noite, tenho em mim tanto do varredor como de Alberto...

07 janeiro 2008

A paixão

Foi naquele Verão, quando ainda éramos pequenos, que me apaixonei por ti pela primeira vez. O teu longo cabelo fresco, ornamentado pelas flores que fui apanhando para ti pelo caminho, pairava levemente animado pelos teus passos leves e ligeiros por entre as pedras e os pinheiros da mata. Nessa noite amámo-nos entre as rochas do pontão com o desespero de dois condenados à morte, ao ritmo do rugido feroz do mar quebrando-se à nossa volta.

"Faz-me rir..." pediste-me tu certa tarde numa esplanada da baixa, por entre uma chávena de café fumegante e um duchaise. O frio queimava-me levemente o rosto, tu apertavas-te mais ao casaco. Nesse dia não eras aquela menina endiabrada a que me acostumei. Estavas menos azul, quase como um adulto.

Já passei horas a ver-te fumar languidamente, envolvidos pela suave penumbra daquele bar onde íamos no bairro alto. Mergulhado nos teus trágicos olhos negros, como que enfeitiçado, o tempo escorria por nós demoradamente entregues cada um à sua obcessão. A tua era a tua solidão, a minha eras tu.

E ontem vi que a luz da tua janela ainda estava acesa, já a noite se demorava. Na rua o silêncio era ensurdecedor e a neblina sufocante. Ainda senti o impulso de te bater à porta mas recuei. Não quis quebrar o feitiço da noite com o ruído das nossas vozes.




Dedicado a uma assídua leitora em particular,
para ti pequena Yin.